O caos fiscal é um patrimônio histórico brasileiro. É revelador o seguinte trecho de palestra proferida pelo professor Alcides Jorge Costa: “O Brasil teve crises financeiras graves no tempo do Império, provocadas pela Guerra do Paraguai. Tanto que, na propaganda republicana, se dizia que o Império era o déficit. Só que veio a República e os déficits aumentaram. (…) Não se sabe se o defeito, àquela altura, estava do lado da arrecadação ou do lado da despesa. Provavelmente estava dos dois lados.” Mais de 150 anos (e várias Constituições) depois, estamos quase na mesma. “Quase”, porque agora temos a certeza de que a crise vem mesmo dos dois lados.
Na ponta das receitas, os gargalos se acumulam: enquanto se empilham regras confusas e se amontoam litígios entre fisco e contribuintes, os cofres ficam cada vez mais vazios. Embora deva se aliar a cortes de gastos governamentais, uma ampla reforma tributária é urgente, e enfim parece existir entre nós a combinação necessária entre vontade e oportunidade.
Nesse contexto, uma “reforma ideal” substituiria todos os tributos sobre o consumo – o impraticável ICMS é o mais crítico – por um único imposto federal sobre valor agregado. O projeto esfriou, muito provavelmente por dificuldades políticas. Não é surpresa: há décadas o ICMS é o próprio oxigênio das burocracias dos Estados. Na prática, as duas pontas se amarram.
Restou ao Governo encaminhar uma “reforma possível”, composta de várias frentes pontuais. É bem verdade que os projetos trazem elementos polêmicos – além da dita “ressureição da CPMF”, pode ocorrer um aumento (ao menos nominal) da carga tributária sobre o setor de serviços por força da nova Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que terá alíquota de 12%, em substituição ao PIS e à COFINS, que hoje chegam ao máximo a 9,25%, ao passo que comércio e indústria não seriam impactados na mesma medida. Ainda assim, o saldo das intenções reformistas parece positivo. As mudanças cogitadas para o Imposto sobre a Renda (IR) soam modernizantes: espera-se uma redução da carga empresarial como contrapartida à tributação de dividendos, que são isentos desde meados da década de 90. Também se mostra interessante tornar o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) um tributo eminentemente regulatório, “extrafiscal”, utilizado para desincentivar ou incentivar o consumo de produtos específicos, retirando-se do alcance do imposto a maioria das empresas. Já a desoneração da folha de pagamentos é cada vez mais indispensável sobretudo em tempos de uma pandemia cujos efeitos são devastadores para a economia e o emprego.
A reforma tem sido rotulada de “modesta”. Constatação verdadeira, mas insuficiente. Cabem dois comentários essenciais. Em primeiro lugar, tudo leva a crer se trata de uma modéstia necessária, já que insistir na “reforma ideal” – isto é, na unificação de praticamente todos os tributos sobre o consumo (PIS, COFINS, IPI, ISS, ICMS) – poderia significar a queima de um cartucho precioso com o qual, no fim do dia, pretende-se atingir alguma reforma no curto prazo. Em segundo lugar, felizmente, parece também ser um caso de falsa modéstia: a “reforma possível” se apoia nos mesmos – e ambiciosos – princípios da “reforma ideal”: a intenção de descomplicar o sistema e de reduzir um contencioso fiscal que atingiu níveis distópicos, por exemplo, se mostra com clareza na substituição do PIS e da COFINS pela CBS, que adota o modelo de “crédito pleno” em substituição à sistemática atual, na qual apenas os itens considerados como “insumos” e afins geram créditos no sistema não-cumulativo. As outras ditas “fases” da reforma também deixam transparecer alvos equivalentes: simplificação, desoneração da produção e da circulação, desincentivo à “pejotização”, reequilíbrio das alíquotas dos variados tributos, etc.
Mesmo que por si só não abale as estruturas, o pacote reformista se mostra como um primeiro movimento concreto em direção à imprescindível revolução tributária que, talvez, só possa mesmo ser alcançada passo-a-passo e com grande esforço – afinal, trata-se de tirar o Sistema Tributário Nacional de um atoleiro que é secular na experiência brasileira. Preocupa que os passos possam parar no meio do caminho. Uma verdadeira reforma faz sentido como um todo e não apenas com medidas pontuais. É essencial que, até o fim, se escolha bem onde pisar, melhorando-se um dia após o outro as chances de se chegar ao destino final almejado.
*Matheus Curioni é bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo. É advogado associado de CSMV Advogados, atuante em Direito Tributário nas áreas de consultoria e contencioso.